A comédia trágica ou a tragédia cômica de Mr. Punch – Um romance

Mr. Punch foi a segunda HQ que li para o desafio da hashtag #promessadeleitura2019.

E aqui vamos nós 🙂

Diferentemente de Sinal e ruído que, apesar da temática de fim de mundo, se passa num “glamouroso” mundo do cinema, esta tragicomédia se passa numa cinzenta cidade litorânea da Inglaterra. E esse cinza invernal é o que nos dá logo no início o tom da história que vamos acompanhar.

A narrativa é feita em primeira pessoa: um homem adulto relembrando momentos de sua infância, tentando descobrir através de fotografias mentais de seus avós e tios-avós quem eram as pessoas que fizeram parte de sua vida e, consequentemente, quem ele é.

Durante essa viagem ao passado, descobrimos que as histórias que os adultos nos contam para explicar o mundo quando somos crianças vão se misturando às suas ações e, conforme o tempo passa, percebemos as incongruências, as contradições e crescemos: perdemos a inocência à medida que o fim da infância se aproxima.

E esse parece ser o tema da HQ: a perda. De certa forma, todas as perdas que nos acometem enquanto crescemos: quando paramos de acreditar em magia e percebemos que os adultos estão tão perdidos quanto nós e que nossos pais e avós não vão viver para sempre…

Cada imagem carrega uma sensação de perda, mesmo que a perda tenha traços, embora leves, de alívio.

A velhice carrega ônus, estranhos, e um deles, talvez de forma inevitável, é a morte.”

Os acontecimentos se dão numa temporada que o protagonista passou na casa dos avós; e a sua história e a de Mr. Punch se misturam quando, numa manhã fria, ele sai para pescar com o avô e encontra um teatro de bonecos na areia da praia. Mr. Punch entra em cena e chama sua esposa: começam o espetáculo – mesmo que só tenham um menino como plateia. A partir de então, as memórias do menino (agora adulto) vão se intercalando com a história de Mr. Punch: ambas plenas de mortes e perdas.

(Não encontrei muita informação em português sobre o que é “Mr. Punch”, mas algumas curiosidades ajudam a entender a relação com a narrativa da HQ:

Mr. Punch é uma peça de teatro de fantoches que se tornou popular na Inglaterra durante a era vitoriana (1837-1901) e acabou por se tornar parte do folclore. Apesar das variações em sua história, alguns elementos que sempre estão presentes são o relacionamento violento que Mr. Punch tem com a esposa Judy e o filho recém-nascido e o humor macabro, pois Punch se livra das confusões e mortes que comete cometendo mais mortes…)

Duas cenas me marcaram com relação ao tema da perda da inocência. Uma delas acontece quando, depois de assistir a uma apresentação, o menino vê os atores tirando as fantasias: é como se o mundo estivesse se desvelando, mostrando como é de verdade. A outra cena mostra como esse momento do crescer e tomar consciência pode ser confuso: ao final de mais uma apresentação do teatro de fantoches, o menino se despede do fantoche que encerra o espetáculo, mesmo sabendo que era a mão e a voz de alguém controlando o “boneco”, mesmo sabendo que era só um fantoche…

Por outro lado, há um episódio em que nos é sugerido como podemos manter essa magia da infância ainda na vida adulta: através da criação artística. O Professor – como é chamado o responsável pelo espetáculo de Mr. Punch – apresenta o elenco para o menino (quer dizer, os fantoches) e, ao colocar um deles na mão, a criança vê o personagem magicamente criando vida!

Muitas outras cenas e acontecimentos vão ilustrando essa fase de crescimento e confusão como metáforas no mundo físico do que se passa no interior do personagem em sua busca por descobrir quem é: o caça-níquel que o avô tem num conjunto de lojas falidas, que se organizam em corredores labirínticos, onde também há uma atração que é, justamente, um labirinto de espelhos.

Tudo aquilo que lemos no texto, é magistralmente registrado em imagens pela arte de Dave McKean que, como em outros de seus trabalhos, compõe as páginas usando uma mistura de ilustração, fotografia e montagem. A fonte utilizada nos balões e recordatórios ajuda a passar uma sensação de proximidade, como se estivéssemos lendo um diário, pois lembra uma letra escrita à mão.

A experiência de leitura de Mr. Punch muitas vezes nos faz mais sentir do que pensar, embora uma das reflexões que podemos fazer é sobre a contribuição das pessoas ao nosso redor para nos tornarmos as pessoas que somos, mesmo que elas e nós mesmos não tenhamos dimensão dessa dinâmica, e como a nossa memória, também muitas vezes, só lembra do que quer e como quer.

Título: Mr. Punch
Autores: Neil Gaiman e Dave McKean
Editora: Conrad
Páginas: 104
Valor de capa: Entre edições novas e usadas, há uma variação de preço entre R$ 18,75 e R$ 99.

Para quem quiser saber mais sobre Dave McKean:

Sinal e Ruído, de Neil Gaiman e Dave McKean: https://cabruuum.com/2020/06/05/sinal-e-ruido-de-neil-gaiman-e-dave-mckean/

Black Dog de Dave McKean: como retratar momentos especiais sem ser óbvio ou piegas: https://cabruuum.com/2019/10/25/black-dog-de-dave-mckean-como-retratar-momentos-especiais-sem-ser-obvio-ou-piegas/

Quadrinhos para adultos: Conheça a ilustração “XXX” de Dave McKean: https://cabruuum.com/2017/07/04/quadrinhos-para-adultos-conheca-a-ilustracao-xxx-de-dave-mckean/

Deixe um comentário

Site criado com WordPress.com.

Acima ↑